quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Estado vingador e os promotores de injustiça no caso da Boate Kiss


No último mês de 2021, foram julgados e condenados os acusados de serem os únicos responsáveis pela tragédia do incêndio na boate Kiss, na cidade de Santa Maria (RS), ocorrida em 2013, que vitimou de forma fatal 242 pessoas. A acusação, por meio do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, foi de homicídio doloso (art. 121, CP), de forma eventual (ou indireta), que se define quando a pessoa não tem a intenção de matar alguém, mas prevê que o resultado aconteça e não dá a mínima e mesmo assim comete o ato, como "ah, se morrer alguém, não me importa". Foi isso mesmo que aconteceu?

As famílias das vítimas queriam que a justiça fosse feita, ou que alguém pagasse por aquilo. As lágrimas precisavam secar, não importa de que maneira. Na fatídica noite, o vocalista da banda Gurizada Fandangueira usou um fogo de artifício imprudentemente, comprado por um dos produtores da banda que trabalhava com diária, sendo que os donos do estabelecimento, de forma negligente, não tomaram os devidos cuidados para que o ambiente não pegasse fogo e causasse a morte de quem estivesse lá dentro.

Notem que destaquei de forma proposital dois elementos do crime culposo, nos termos do art. 18, II, do Código Penal Brasileiro. Os dois sócios, o vocalista e o produtor da banda foram os denunciados. E ninguém mais. Nem fiscal, nem comando dos bombeiros, nem sequer outra pessoa suspostamente responsável. O alvo precisava ser fácil.

Na decisão, o juiz decidiu pronunciar os réus para o Tribunal do Júri, nos termos do art. 413 do Código de Processo Penal, por entender que houve indicação de materialidade e autoria de crime doloso contra a vida, sendo competência para o júri julgar, de acordo com o art. 5º, XXXVIII, d, da Constituição Federal. Sendo que manifestava-se de forma cristalina a desclassificação para homicídio culposo, como determina o art. 419 do CPP. Iria além, pois no caso do produtor, caberia ausência de nexo causal, afastando a tipicidade, nos termos do art. 415, IV, também do CPP. O magistrado, entretanto, pelo clamor social e dimensão da tragédia, resolveu ignorar a lei penal e seguiu o rito cabal para a condenação dos réus, haja vista que os jurados julgam o fato, não o direito.

A defesa, aos "45 do segundo tempo", impetrou um habeas corpus preventivo aos réus junto ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, o que garantia a liberdades deles até que verificassem se o julgamento teria ocorrido dentro dos trâmites corretos. Eis que vem a "pá de cal" na segurança jurídica referente ao Processo Penal. O Supremo Tribunal Federal resolveu aparecer, ao conceder uma liminar do MP derrubando o habeas corpus e ordenando a prisão imediata dos condenados. Se você estuda Direito e Processo Penal, não está entendendo nada. Pois é, nem eu. Mas seguimos.

Em decisão monocrática (uma das maiores inimigas da segurança jurídica no Brasil), do Ministro Luiz Fux, derruba o HC mandando prender os réus condenados, ferindo o próprio regimento interno do STF em seu art. 297, que fala da suspensão de segurança, em que o Presidente pode suspender decisão de mandado de segurança de tribunais federais ou locais, quando houver lesão à ordem ou interesse públicos. Ou seja, não se fala de HC nem de matéria penal.

Já comentado sobre o desrespeito ao próprio regimento, há de se criticar também sobre a competência: de acordo com o art. 4º da Lei nº 8.437/1992, compete ao presidente do tribunal, ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso, suspender, em despacho fundamentado, a execução da liminar nas ações movidas contra o Poder Público ou seus agentes. Quem deveria julgar se mantinha a decisão ou não deveria ser o Presidente do TJ/RS, jamais o Presidente da Suprema Corte. 

O presidente da instância máxima do Poder Judiciário, com sua insensível e imprudente decisão, ofende o processo legal, a lei penal, instaurando um Estado vingador, justiceiro com as próprias mãos, motivado por promotores de injustiça que se abstiveram do dever de custos legis, ou fiscais da lei. Essa última tarefa restou aos juristas, que engolem a seco com desgosto mais uma notória insegurança jurídica, e questionar a própria inteligência, analisando se esses anos todos de estudo valeram mesmo a pena.

0 comentários:

PAULO MONTEIRO ADVOCACIA & CONSULTORIA

OAB/CE Nº 46.849
Rua Dom Pedro II, 736 - Cruzeiro - Camocim, CE, Brasil. CEP: 62400-000
E-MAIL: pmonteiroadvocacia@gmail.com
REDES SOCIAIS: @pmonteiroadvocacia