Segue artigo da renomada jurista Maria Berenice Dias.
Todo mundo acredita que existe o chamado “débito conjugal”.
Uma crença tão antiga que até dispõe de uma expressão latina debitum conjugale.
Esta não é a única referência a esse “direito-dever” que
advém do Direito Canônico, chamado de jus in corpus, ou seja, direito sobre o
corpo. Claro que é o direito do homem ao corpo da mulher, para atender ao dogma
“crescei e multiplicai-vos”.
O fato é que o casamento sempre foi identificado com o
exercício da sexualidade, pois servia para “legalizar” as relações sexuais. Era
um remédio contra a concupiscência – remedium concupiscentiae – o que, segundo
o dicionário, significa inclinação a gozar prazeres sexuais.
Até hoje há quem afirme que o casamento se “consuma” na
noite de núpcias. Antigamente, tal ocorria pelo desvirginamento da mulher, fato
que precisava ser provado publicamente, pela exposição do lençol marcado de sangue,
como é visto em filmes de época. Mesmo com o fim do tabu da virgindade – que já
serviu até de causa para o pedido de anulação de casamento – o mito continua.
Ainda que persista a crença que o débito conjugal existe,
ninguém consegue definir do que se trata. Será a obrigação do exercício da sexualidade?
Significa que os cônjuges são obrigados à prática sexual? De onde advém este
dever?
Será que a desculpa feminina da dor de cabeça configura descumprimento
da obrigação? E a ejaculação precoce ou a impotência – fantasmas que rondam
todos os homens – seriam inadimplemento ou mau cumprimento desse dever? E a
alegação da mulher de nunca ter sentido prazer, é causa suficiente da
incompetência masculina para se desincumbir de seu encargo? E, se de uma
obrigação se trata, pode ser executada por terceiros ou é uma obrigação
infungível?
A sorte é que a lei não impõe o débito conjugal. O casamento
estabelece comunhão plena de vida (CC 1.511) e faz surgir deveres de
fidelidade, vida em comum, mútua assistência, respeito e consideração (CC
1.566). Nenhuma dessas expressões é uma maneira pudica de impor a prática
sexual. Nem o dever de fidelidade permite acreditar que existe o encargo da
prática sexual. Mais serve é para gerar a presunção de paternidade dos filhos
(CC 1.597), se tanto.
Nem entre as causas da separação – antigo instituto que não
mais existe – havia a previsão de que a ausência de vida sexual autorizava o
pedido de separação. A obsoleta culpa, que em boa hora foi abolida do sistema jurídico,
autorizava o pedido de separação, sob a alegação de impossibilidade de vida em
comum, em caso de adultério, injúria grave, conduta desonrosa (CC 1.573). Mas
não há como chamar de injúria grave a resistência esporádica ou contumaz de
manter relações sexuais. De outro lado, a ausência de sexo não torna o
casamento anulável.
Sequer se pode dizer que configura vício de vontade (CC
1.550 III) ou erro essencial sobre a pessoa do outro (CC 1.556) que diga respeito
à sua identidade, honra ou boa fama, a tornar insuportável a vida em comum (CC 1.557
I). Também não pode ser identificada como defeito físico irremediável (CC 1.557
III).
De qualquer modo, mesmo quando há erro essencial, a
coabitação valida o casamento (CC 1.559). Claro que esta referência não diz com
a prática sexual, mas com a vida em comum sob o mesmo teto. Apesar de a
anulação do casamento dispor de efeito retroativo (CC 1.563), enquanto
perdurou, gera inúmeros reflexos, inclusive de ordem patrimonial, que não podem
desaparecer. Mas, pelo que diz a lei, a anulação do casamento apaga tudo. Os casados
voltam ao estado civil de solteiros e não persiste sequela alguma da união,
ainda que tenha durado por três anos, que é o prazo prescricional da ação anulatória
(art. 1.560, III, CC).
Às claras que o casamento traz a expectativa da prática
sexual, em face da imposição social e cultural de sua finalidade procriativa.
Mas a abstinência sexual de um dos cônjuges não gera o direito à anulação do
casamento. Não há como alegar afronta ao princípio da confiança que se
identifica pela expressão venire contra factum proprium, nada mais do que
vedação de comportamento contraditório que autoriza a busca de indenização de
natureza moral.
Portanto, de todo desarrazoado e desmedido pretender que a
ausência de contato físico de natureza sexual seja reconhecida como
inadimplemento de dever conjugal. Forçar o exercício do “direito” ao contato
sexual pode, perigosamente, chancelar a violência doméstica. É bom lembrar que,
por muito tempo, prevaleceu a tendência de desqualificar o estupro conjugal.
Ainda assim, reiterados são os julgados anulando o casamento
sob a alegação da impotência coeundi, mais uma expressão latina, e que
significa impossibilidade de manter relações sexuais. Os fundamentos jurídicos
são dos mais diversos, desde erro moral, erro essencial e injúria grave. Nenhum
deles, no entanto, com respaldo legal.
Mas é a afetividade e o amor que levam as pessoas a casarem.
Estes são os mais significativos ingredientes da affectio maritalis – para
continuar invocando expressões antigas – presente nos vínculos familiares da
atualidade!
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